7º Prêmio EDP nas Artes. 
Instituto Tomie Ohtake. Texto por Dora Longo Bahia.

2020

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Photo: Ricardo Miyada

Texto originalmente publicado no catálogo do 7º Prêmio EDP nas Artes. 2020. Instituto Tomie Ohtake. São Paulo, Brasil.Júri composto por Amanda Carneiro, Arthur Chaves, Dora Longo Bahia, Elilson and Theo Monteiro.


... todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da
história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes (...):

a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Karl Marx[1]


1960 – Tragédia. A “Nova Capital” do Brasil é inaugurada como continuação de um projeto de ocupação e dominação perpetuado pela tradição colonial. Os “palácios modernos” – do Planalto e da Alvorada – são alicerçados sobre a mitologia colonial luso-tropical, repetindo a horizontalidade das casas-grandes com seus amplos alpendres ou varandas, rodeadas por uma natureza exuberante e protegidas por jagunços fardados[2]. A alegada modernidade estrutura-se sobre a tragédia do subdesenvolvimento e da dependência, explicitando os privilégios e as prerrogativas absolutas dos grandes latifundiários.  

O projeto de Brasília preserva um processo perverso de “colonização interna”, explicitando-o por meio da instalação de quarteis ao longo do eixo monumental da cidade. Para que esses quartéis dentro da cidade? Quais seriam as funções específicas dessas tropas, quando a “Nova Capital” se achava protegida geograficamente do ataque súbito de um inimigo? A única justificativa que poderia fazer algum sentido era a de que essas tropas não se destinavam a defender a nação contra inimigos externos, mas a desfilar com todo seu aparato bélico, pelo eixo central da cidade, “a fim de fazer efeito sobre os próprios habitantes e pesar [...] sobre a deliberação de um ou mais poderes da República. Mas então para que mudar? Para que Brasília? Para que sonhar com utopias?[3]

2020 – Farsa. O presidente Jair Messias Bolsonaro completa quase dois anos de mandato. Apoiado pelo império norte-americano, a dupla articulação – dependência externa e segregação social — é definitivamente cristalizada como alicerce fundamental da acumulação de capital[4]. A contrarrevolução fascista joga por terra tanto os ideais desenvolvimentistas da construção de Brasília quanto os sonhos socialistas de alguns de seus idealizadores, aos berros de uma sociedade antissocial, antinacional e antidemocrática. Pobreza, miséria e morte se transformam definitivamente na galinha de ovos de ouro da elite brasileira. O Exército mais uma vez se volta contra aqueles que deveria proteger e a farda oculta do presidente torna-se cada vez mais visível. Não há mais nenhuma ilusão de que um capitalismo civilizado esteja por vir. O véu da utopia moderna é definitivamente retirado, revelando as estruturas precárias e farsescas que ele escondia.

E daí? Já não deixamos faz tempo de sonhar com utopias? A política nacional não foi sempre obscena? Qual a razão deste texto meio lúgubre num catálogo de uma exposição de artistas jovens?

Cuidado! Transportada do mítico Oeste brasileiro por Talles Lopes, a farsa do modernismo utópico de Brasília chegou para assombrar esta exposição.


Dora Longo Bahia
07.09.2020




[1] MARX, Karl, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, tradução e notas: Nélio Schneider, prólogo: Herbert Marcuse, São Paulo: Boitempo, 2011.

[2] O historiador da arte Luiz Renato Martins comenta que Niemeyer declarou à época: “O Palácio da Alvorada [...] sugere elementos do passado – o sentido horizontal da fachada, a larga varanda que desenhei com o objetivo de proteger esse palácio, a capelinha a lembrar, no fim da composição, as nossas velhas casas de fazenda” (NIEMEYER, Oscar, “Depoimento”, Revista Módulo, n.9, Rio de Janeiro, fevereiro de 1958, p.3-6 apud MARTINS, Luiz Renato, “Pampulha e Brasília, ou as longas raízes do formalismo no Brasil”. In:Crítica Marxista, n.33, p.105-114, 2011. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo242merged_document_252.pdf).

[3] Em 1957, o crítico de arte Mário Pedrosa já constatava que “algo de contraditório se esconde no invólucro moderníssimo da concepção” de Brasília, comparando a capital a Maracangalha, distrito baiano eternizado por Dorival Caymmi, e indagando-se sobre o que se na realidade estaria em jogo na mudança da capital para o centro-oeste do país (PEDROSA, Mário “Reflexões em torno da nova capital”. In: ARANTES, Otília B. F. (org.), Acadêmicos e modernos: textos escolhidos, v.III, São Paulo: Edusp, 1995, pp. 394-4001 apud MARTINS, op. cit., 2011).

[4] Cf. SAMPAIO JR., P. S. A. “Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa”. In: Serviço Social & Sociedade, no.112 São Paulo Oct./Dec. São Paulo: Cortez Editora Ltda, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-66282012000400004.