The other of the other

Projeto resultado do Programa de Residência para Projetos Independentes no IPA - Institute for Public Architecture.
New York City.
2023.


Idealizado durante a programa de residências de outono para projetos independentes do IPA - Institute for Public Architecture, o projeto “The other of the other” (2023) foi produzido a partir de visitas e investigações em uma série de locais e arquivos institucionais em Nova Iorque, que tem influenciado o trabalho do artista desde 2018. No geral, espaços e arquivos relacionados a veiculação da arquitetura modernista brasileira no norte global a partir do contexto de NYC, especialmente os arquivos do MoMA em Manhattan.

Interessado em pensar sobre a relação entre a exportação de uma imagem exótica através da circulação da arquitetura brasileira e a manutenção de lógicas coloniais no próprio território brasileiro, “The other of the other” se apropria e reelabora displays expositivos de mostras como Brazil Builds (1943, MoMA) e o pavilhão brasileiro na Feira Mundial de Nova York (1939).


Como artista e habitante do Brasil central, tenho buscado discutir como o design e a arquitetura estiveram inseridos em um regime de ocupação e exploração colonial desse território sob a premissa da modernização. Durante a residência de outono coordenada pelo IPA (Institute for Public Architecture) em Governors Island, Nova Iorque, me dediquei a pensar como a imagem comoditizada de uma brasilidade moderna e tropical, parcialmente produzida a partir da arquitetura em meados do último século, pode ter decorrido na manutenção das estruturas e narrativas coloniais que permeiam esse território onde habito.

Vivendo em Governors Island, eu pude investigar como esse imaginário foi parcialmente produzido no contexto de Nova Iorque através de exposições de arte, arquitetura e design em diferentes instituições durante o século XX. Visitando arquivos e espaços relacionados a minha investigação na cidade, entre eles o parque que abrigou as feiras mundiais de 1939 e 1969 , o Jardim Botânico de Nova York e principalmente os arquivos das exposições do MoMA - The Museum of Modern Art - em Manhattan e a coleção de maquetes, cartazes e projetos modernistas na unidade do museu no Queens. Partindo dessa investigação para abordar dois episódios fundamentais para internacionalização da arquitetura moderna brasileira em NYC, a experiência modernista do Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York (1939) desenhado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, mas especialmente Brazil Builds (MoMA, 1943), a exposição de arquitetura brasileira que consagrou internacionalmente a produção modernista do Brasil.


Em distintas proporções, essas duas exibições estiveram marcadas pela propaganda estatal do país como um território continental na iminência de tornar-se uma potência mundial, mas também por um apelo a suas características exóticas através da forte presença de plantas tropicais no interior das exibições. Se por um lado a filiação a um modernismo corbusiano atestava um desenvolvimento aos moldes ocidentais, por outro, o uso da flora brasileira surgia como signo de dominação e colonização das selvas tropicais pelo próprio Brasil.

Minha hipótese é que o fetiche em torno de uma estilística tropical, manifesto no destaque excessivo de plantas exóticas nessas exposições, foi um sintoma a um conjunto de políticas de colonização e integração territorial no século XX, as quais a arquitetura moderna se prestou como principal representante. Políticas pautadas por um imaginário onde as florestas performavam a representação do “outro”, estigmatizadas junto com suas populações como selvagens sujeitos a domesticação ocidental, enquanto a arquitetura modernista era institucionalizada enquanto a própria representação do suposto processo civilizatório.

A agressiva expansão agrícola e extração mineral, a violenta integração das comunidades não-brancas ao projeto nacional somados a todo o imaginário de dominação das selvas, foram traduzidos em Nova York na exibição de exuberantes plantas tropicais ao lado de edifícios modernos de concreto e aço. Com a domesticação das plantas nessas exposições o Brasil sinalizava a domesticação de seu próprio território em seu projeto colonial de integração nacional.



Em paralelo, tal apelo estético de subordinação da natureza parece ter perpassado a histórica violência racial no Brasil, quando a dominação da “selva” significava também a dominação simbólica daqueles racialmente julgados como “selvagens”, as populações negras e indígenas ligadas aos territórios de origem dessas vegetações. Conforme dissecado pelo pesquisador Patricio Del Real, exposições como Brazil Builds convergiam com a necessidade compartilhada entre os governos de Brasil e EUA de apresentar o Brasil como um lugar onde a cidadania superava o preconceito racial, reiterando a violenta lógica por detrás da democracia racial que reforçou a violência de raça na medida em que narrava sua inexistência.

Levantando suspeitas sobre um apagamento operado pela convergencia entre as ideologias estatais e a produção arquitetônica, como ainda identifica o pesquisador, Brazil Builds narra uma história da arquitetura brasileira profundamente influenciada pela “escravidão negra importada da Africa”, no entanto, todas essas referências raciais desaparecem quando a exposição adentra na “modernidade brasileira”. Assim, como uma espécie de ato falho, é provável que a democracia racial ilustrada exóticamente nas plantas tropicais, tenha vindo nos revelar as frágeis bases da harmonia racial-tropical-moderna sintetizada nessa ideia de modernidade.

Nessa perspectiva, se conflagrou uma ambígua condição na qual o Brasil e sua arquitetura performaram o “outro” em relação ao “universalismo” da produção do norte-global, na medida em que seu aspecto formalista e tropical o diferenciavam dos cânones, ao mesmo tempo que essa mesma arquitetura “outra” simbolizava no país a reprodução interna das mesmas lógicas de dominação e exploração perpetuadas desde o pensamento ocidental. Como resultado dessa relação com o contexto de Nova Yorque, eu realizei uma intervenção no quarto da IPA onde fiquei hospedado ao longo processo, confrontando assim a esfera privada e doméstica (assim como minha própria condição individual), com a dimensão pública, internacional e “universal” comum aos museus, feiras e narrativas que tenho abordado no meu trabalho. Nessa intervenção eu trabalhei um conjunto de imagens e objetos na expectativa de formular uma resposta, uma interlocução, ou mesmo uma espécie de arquivo paralelo em relação às narrativas oficiais produzidas e salvaguardas nos arquivos da cidade.


Em meio às investigações na residência para produzir “Internacional Style”, resgatei mapas históricos do Brasil e dos EUA, tanto um grande painel de comparação territorial entre os dois países apresentado no pavilhão brasileiro na Feira Mundial de Nova York em 1939, como mapas relacionados a Marcha para o Oeste (1938) no Brasil a ao Destino Manifesto nos EUA, mitologia que legitimava as ondas de colonização da Westward Expansion (1801-1861) no país norte americano. Dentre os vários significados possíveis, o painel no pavilhão brasileiro ressoa como uma silenciosa filiação a um modelo de imperialismo Ianque, a analogia entre os territórios pode ter sido também uma tentativa de afirmação da capacidade expansionista brasileira, e logo de uma iminente lógica colonial. Com se quisesse galgar qualquer legitimidade ocidental, apesar de evidentemente ser seu outro.

Ao mesmo tempo, algumas das obras propõem uma abordagem em torno dos displays da mostra Brazil Builds (MoMA, 1943). Uma instalação traz livros clássicos da bibliografia sobre arquitetura modernista latino americana publicados nos EUA e Reino Unido, os livros, a história da arquitetura brasileira e também as narrativas heróicas dos grandes feitos modernistas tem sua função alterada, sendo utilizados assim como os pedestais da mostra Brazil Builds para exibir uma planta tropical corriqueira no cotidiano doméstico brasileiro.

Dentro do quarto, dois grandes pedestais também fazem menção aos displays usados em Brazil Builds, onde curiosamente a maquete do icônico Palácio Capanema (Rio de Janeiro, 1943) ocupava um suporte equivalente ao usado para apresentação de uma planta usual no Brasil, um Filodendro Burle Marx. A sutil analogia no MoMa entre a planta e a maquete ressoa uma lógica mais ampla, a instituição da arquitetura latina como o exótico, uma versão “selvagem” em relação à arquitetura moderna ocidental do período. Nesse sentido, o site specifc no quarto reencena os displays, mas eleva a maquete e o filodendro próximo ao teto, numa tentativa ou de anular o contato visual direto com os objetos, suspendendo tal narrativa exótica, ou de evidenciar tais relações construídas historicamente, já que o topo de um alto pedestal também é um lugar de destaque.