Paisagem Aclimatada

Exposição individual. Cerrado Galeria. 
Goiânia, Brasil.
2024.









PAISAGEM ACLIMATADA
Texto por Divino Sobral
Curador

Primeira exposição individual de Talles Lopes em Goiânia, Paisagem Aclimatada reúne trabalhos que mostram o desenvolvimento atual das pesquisas do artista em torno do espaço, considerando suas formas de representação como formas de dominação e questionando-o enquanto território, portanto tratando-o como construção humana assentada em questões de ordens política, econômica, social e cultural, cuja influência direciona a maneira  como são articulados os conceitos de cartografia, paisagem, paisagismo, jardim, lavoura e arquitetura.

Nascido em 1997 no Guarujá (SP) e residente em Anápolis (GO), o artista possui formação em arquitetura, disciplina que tem papel proeminente em sua produção, dedicada a refletir sobre as marcas impressas sobre o espaço brasileiro pelos modelos de colonização e de modernização aqui implantados. Com ampla envergadura temporal, sua obra pensa o Brasil fazendo referências a fontes provenientes da história da arte e da arquitetura, da estatística, da botânica e do paisagismo.

Em Paisagem Aclimatada Talles Lopes opera com procedimentos instalativos, articulando relações entre pinturas sobre telas e desenhos sobre papel dispostos sobre formas abstratas pintadas sobre as paredes, juntamente com vasos, criados nos anos 1950 pelo designer e arquiteto suíço Willy Guhl (1915–2004), contendo plantas ornamentais; dispostos no espaço da exposição, os vasos criam uma paisagem-jardim Aclimatada ao interior da Cerrado Galeria.  


Nas pinturas realizadas sobre telas, aplica sobre os contornos extraídos de cartografias do território brasileiro realizadas nos séculos 16 e 17, projetos de paisagismo de autoria de Roberto Burle Marx (1909–1994), datados dos anos 1940-50. Paisagista e pintor, foi responsável pela criação do paisagismo modernista e pela inserção das plantas brasileiras nos projetos de paisagismo, abandonando a importação de espécies exóticas. Outra pintura sobrepõe ao mapa de Pernambuco o desenho da Casa Dominó (1914) projetada por Le Corbusier (1887–1965), engastando na estrutura arquitetônica da “Planta livre” a engrenagem de moagem de um engenho de cana do período colonial, reativando a ideia de “máquina de morar” contaminada pela ideia de máquina de moer gente escravizada. O arquiteto e urbanista suíço, Le Corbusier teve grande influência na arquitetura brasileira como consultor do projeto de construção do edifício do Ministério da Educação e da Saúde (de 1937 a 1943), ícone da arquitetura moderna do Brasil.

Deste edifício, Talles Lopes recortou a forma de um painel decorativo em azulejos de Candido Portinari (1903–1962) e a pintou sobre a parede da galeria. As formas pintadas em positivo ou negativo sobre as paredes não são mera cenografia da exposição, ao contrário, trazem referências de grande valor e dilatam a amplitude da pesquisa do artista, como a citação aos displays usados na Exposição Nacional do Estado Novo, que fora realizada entre 1938 e 1939 como um balanço da modernização do país e como propaganda do Governo autoritário de Getúlio Vargas (1882–1954). Como um site specif, na pintura parietal inspirada pelo display do Ministério da Educação e da Saúde naquela exposição, Talles Lopes insere uma pintura original de Burle Marx, acompanhada por desenhos que reproduzem alguns de seus projetos e pelo catálogo da importante exposição Brazil builds, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1943, e que exibiu registros da arquitetura brasileira acompanhados de exemplares de plantas ornamentais da flora nacional. Em outras paredes estão pinturas monocromáticas executadas sobre suportes com formas abstratas, orgânicas, inspiradas nos canteiros desenhados por Burle Marx para o jardim do Ministério, atual Palácio Gustavo Capanema.

Paisagem Aclimatada, de certa maneira, discorre sobre as mudanças trazidas pelos sucessivos ciclos econômicos do país, baseados na exploração da terra e de espécies vegetais exóticas (cana-de-açúcar, algodão, café, soja)  que transformaram as paisagens desde a faixa costeira até o interior, chegando à ocupação das vastas regiões Norte e Centro Oeste com o avanço do agronegócio. Colonizar a terra e modernizar o território, no Brasil, implica em criar outra paisagem, diferente do natural, foi e é, permanentemente, Aclimatada para gerar o enriquecimento de poucos exploradores. 






FORMA LIVRE FRONTEIRA

Text por Paulo Tavares 


“E como os movimentos do espírito precedem as manifestações das outras formas da sociedade, é fácil de perceber a mesma tendência de liberdade e conquista de expressão própria tanto na imposição do verso-livre antes de 30, como na “marcha para o Oeste” posterior a 30.”[i]
Mario de Andrade, O Movimento Modernista, 1942.

Nesta passagem chave de seu famoso balanço crítico O Movimento Modernista publicado em 1942, Mario de Andrade associa a forma livre instaurada pela revolução modernista ao projeto de colonização do Brasil Central capitaneado pelo regime ditatorial do Estado Novo, a chamada Marcha para o Oeste.

“O verdadeiro sentido de brasilidade”, disse Getúlio Vargas apropriando-se do vocabulário estético modernista, “é a Marcha para o Oeste”. Gilberto Freyre atribuía o mesmo significado moderno-nacional ao que chamou de auto-colonização: “a colonização do Brasil logo deixou de ser estritamente europeia para vir a ser um processo de auto-colonização: um processo que haveria de tomar, depois da independência, caráter nacional.” Nas palavras de Vargas, tratava-se de “nosso imperialismo”, ou seja, um imperialismo nacional, direcionado a conquistar e colonizar seu próprio território. 

Forma livre e expansão da fronteira colonial encontram-se na “conquista de expressão própria,” substâncias do mesmo projeto de modernidade e identidade nacional. Mais do que isso, o que Mario de Andrade deixa entender é que o movimento da fronteira (assim como a industrialização, seu paralelo urbano), é a própria expressão social da liberdade e da modernidade anunciada pela estética da forma livre modernista.

A compreensão de que a identidade nacional e a modernização do país estão associadas à conquista e à colonização do território encontrou no movimento moderno um de seus principais avatares ideológicos, especialmente através da arquitetura.

Brasília, cidade-fronteira por excelência, “trata-se de um ato deliberado de posse”, escreveu o urbanista Lucio Costa no memorial do Plano Piloto, “um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial.” Para o curador e crítico de arte Mario Pedrosa, o projeto moderno de Brasília encontrava-se na força simbólica e política deste gesto (neo)colonizador: “o reconhecimento pleno de que a solução possível ainda era na base da experiência colonial, quer dizer, uma tomada de posse à moda cabralina”.

O lastro entre colonialidade e modernidade, cuja origem ideológica está no pensamento racializado e racista que identificou a arquitetura do colonialismo português como fundante da tradição artística nacional, deu forma à linguagem “tropical” e “barroca” do que viria a ser internacionalmente reverenciado como “o estilo brasileiro” na arquitetura moderna. Com suas formas livres, curvilíneas, sinuosas e abstratas, com toda sua exuberância e sexualização tropical, a arquitetura moderna brasileira dissimulou os alicerces políticos e ideológicos de sua herança colonial, ou melhor, fez deles patrimônio, comunicando imagens da fronteira colonial-moderna como movimento ao progresso, a democracia racial, e a formação da identidade nacional.

[i] Mario de Andrade, O Movimento Modernista, Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942, p. 63-65. A passagem na íntegra é: “E como os movimentos do espírito precedem as manifestações das outras formas da sociedade, é fácil de perceber a mesma tendência de liberdade e conquista de expressão própria tanto na imposição do verso-livre antes de 30, como na “marcha para o Oeste” posterior a 30; tanto na “Bagaceira”, no “Estrangeiro”, na “Negra Fulô” anteriores a 30, como no caso da Itabira e a nacionalização das indústrias pesadas, posteriores a 30.”