ESPAÇO, HISTÓRIA, CARTOGRAFIA E ARQUITETURA NA OBRA DE TALLES LOPES
Texto por Divino Sobral
Texto originalmente publicado no catálogo da exposição Individual Excedente Monumental.
MAPA - Museu de Artes Plásticas de Anápolis.
2021
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Excedente Monumental, exposição individual no MAPA - Museu de Artes Plásticas de Anápolis. 2021.(Fotos: Paulo Rezende).
Em sua primeira exposição individual, Talles Lopes adensa sua pesquisa sobre o espaço, tendo como maiores referências as histórias da cartografia e da arquitetura. É um artista pesquisador que se debruça sobre as camadas de significados dispostas nos processos de mapeamento, reconhecimento, construção, uso e representação do espaço, entendido como conjunto de relações travadas entre elementos de ordem física e social. Seu interesse se volta, especialmente, para o lugar do acontecimento da experiência humana chamado Brasil.
O artista problematiza o mapa como registro visual do espaço e de mensuração das ações que nele ocorrem. Acentua o papel da cartografia tanto como arte quanto como ferramenta ideológica de controle sobre o território, e, empregando as convenções cartográficas, comenta desde a invenção do espaço cartografado até dados estatísticos reais referentes a questões sociais, econômicas e políticas.
Talles Lopes reflete sobre a representação do interior do país na cartografia feita desde o século XVI até os anos 1960, e observa nos mapas coloniais a completa distinção entre o interior selvagem e o litoral civilizado onde começou a invasão e a colonização portuguesa; nota que as riquezas minerais abundantes no ermo sertão desconhecido moveram a ambição dos bandeirantes, que causaram a ampliação do território às custas do genocídio; salienta que o projeto moderno de integração nacional e de ocupação dos vazios demográficos, promovido por Getúlio Vargas com a Marcha para o Oeste, se assemelha a outro programa modernizante de Juscelino Kubitschek, que acarretou a criação de Brasília no Planalto Central. Para o artista, a produção dos mapas que acompanharam os discursos de ocupação e de modernização do interior brasileiro, foi atualizada em função dos interesses de cada época, e se manteve com a mesma argumentação de um lugar não dominado a ser permanentemente ocupado e explorado.
Em A Marcha (2018) e Mapa estriado (2020) emprega o Meridiano de Tordesilhas (1494) – criado pelo tratado diplomático de divisão das terras pertencentes a Portugal e a Espanha no continente americano – para a partir dele criar uma anamorfose, um tipo de deformação cartográfica que dá ênfase ao interminável e inalcançável, ao sempre desconhecido interior brasileiro, que se expande de maneira agigantada em direção ao oeste. O resultado da deformação é uma representação da monumentalidade do interior do país, e também uma metáfora da dificuldade atual de superar a permanência dos argumentos de base colonialista impostos sobre o território há mais cinco séculos.



Talles Lopes critica a monumentalidade enquanto retórica a serviço do poder. A instalação Excedente monumental (2020) trata do excesso de monumentalidade da arquitetura edificada nos mais importantes prédios públicos de Brasília, marcadamente modernista. Cinco peças que brincam de quase replicar a forma da coluna do Palácio da Alvorada (1958), obra do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), são encostadas na parede a partir de um canto da galeria, sem os cuidados da boa exibição museográfica são escoradas e encantoadas umas sobre outras como excedentes ou restos do que não deu certo em uma construção. Sem o teatro do poder e levadas para o interior da galeria, as colunas crescem diante do corpo na mesma intensidade em que se mostram como paródia, fazendo piada da grande arquitetura modernista, exibem um humor que surge em grande parte devido aos aspectos dos materiais empregados, à fatura de pedreiro, ao reboco como acabamento da superfície, e também da maneira amontoada de expor as peças assumidamente carnavalizadas.
Entre a citação e a apropriação, Excedente monumental tanto resulta em uma arquitetura cenográfica que critica a teatralidade da coluna original, cujas características singulares fazem a opulência, a elegância, a leveza, a graça e o poder do Palácio do Alvorada, quanto reflete a presença da arquitetura popular e anônima que se apropriou da forma de Niemeyer e a recriou em diferentes contextos, escalas, técnicas e materiais no Brasil adentro.
A formação de Talles Lopes como arquiteto se mostra claramente nos trabalhos dedicados a inventariar aspectos da arquitetura nacional, levantando a produção popular criada sob influência da obra moderna erudita por meio da apropriação do canônico, em um movimento que parte do centro e chega às periferias. É assim que o artista reescreve a história da arquitetura no Brasil na obra constituída como livro e intitulada Construção Brasileira: Arquitetura moderna e antiga (2018). O trabalho ensaia refazer o catálogo da exposição Brazil builds: Architeture new and old 1652-1942, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA) em 1943. A exposição levou as assinaturas do diretor do museu, o arquiteto Philip Lippincott Goodwin (1885-1958) e do fotógrafo Kidder Smith (1913-1997), que também assinaram o catálogo, que se tornou publicação de referência sobre a arquitetura nacional.
Seguindo os princípios da diagramação original, em Construção Brasileira: Arquitetura moderna e antiga Talles Lopes recria a publicação com outra narrativa, inserindo fotografias, extraídas de street view, de quarenta construções realizadas em quinze estados brasileiros, que se apropriam da coluna do Palácio do Alvorada como símbolo da modernização que atingiu o Brasil após a segunda metade do século XX. São projetos de construções residenciais de autoria desconhecida e de marcada natureza popular, que fazem uso exagerado da coluna como ornamento, empregando materiais e as cores na ordem do kitsch, e assim, o reino do gosto duvidoso e do sabor provinciano se junta ao desejo de demostrar visão moderna e de ostentar distinção social.
Na exposição, o livro Construção Brasileira: Arquitetura moderna e antiga está exposto para o manuseio do público sobre uma estante de madeira, afixada sobre a parede na altura de uma base. Está colocado em relação de proximidade com dois outros elementos: na parede: Estudo para Excedente monumental (2020), uma aquarela representando uma coluna do Alvorada; no espaço: Sem título (2021), um ready-made que é em parte um objeto industrial e em outra um ser vivo, em suma um vaso no qual está plantada uma costela-de-adão.




Aqui há o alinhavo de diferentes operações do artista para refletir sobre a arquitetura brasileira e sobre as maneiras de apresentá-la. Situado com um ready-made, o vaso apropriado por Talles Lopes é assinado por Willy Guhl (1915-2004), arquiteto e designer suíço, integrante do movimento neo-funcionalista que trabalhou focado na pesquisa de novos materiais durante a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra. O modelo redondo usado pelo artista é integrante de uma série de vasos de linhas modernistas criada no início dos anos 1950 para a companhia suíça Eternit e produzida com a mistura de concreto e amianto. Os vasos de Guhl foram fabricados também no Brasil e passaram a acompanhar a modernização da paisagem doméstica da classe média. Exuberante e de muita plasticidade, a costela-de-adão fez parte do rol de plantas ornamentais que foram exibidas em meio a fotografias, plantas-baixas e maquetes, na exposição Brazil builds: Architeture new and old 1652-1942. Com esta operação, Talles Lopes retoma a proposta expográfica do MOMA de colocar em diálogo arquitetura modernista e paisagem tropical, enquanto reafirma a intervenção de Guhl na jardinagem brasileira. É necessário notar que as plantas nativas só tiveram seu potencial plástico para paisagismo reconhecido e utilizado na segunda metade da década de 1930, anteriormente predominava o gosto por espécies exóticas, principalmente europeias.
A paisagem é um dos gêneros que Talles Lopes emprega para pensar e abordar a modernização do espaço resultada do desenvolvimento técnico, do progresso econômico e da instalação do novo como estratégia de superação do antigo. Investiga paisagens em localidades interioranas e distantes do Brasil, marcadas pelo isolamento e situação de atraso, dominadas por edificações que de alguma maneira reproduzem a forma canônica da arquitetura modernista, a coluna do Palácio do Alvorada, símbolo do Brasil moderno voltado para o progresso e para o futuro engastado no imaginário popular após a construção de Brasília.
Executada a partir de uma fotografia de street view que possui peculiares distorções, feita com escala de pintura histórica, a imponente pintura Clube Belavistense (2021) representa uma paisagem de Bela Vista, pequena cidade na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, e focaliza a estranha construção levantada na esquina de duas ruas de asfalto esburacado; excepcional para o contexto em torno dela, a construção chama atenção pelo tamanho de área construída e pela presença de um desenho arquitetônico que cita a coluna do Alvorada. Na fronteira distante exibe ao país vizinho o sinal da modernidade pretendida em todos os confins do país.



A grande orla de Novo Aripuanã (2020) é uma instalação composta por dois elementos: uma pintura representando a paisagem do porto da cidade de Novo Aripuanã nas margens do rio Madeira, no Amazonas; uma réplica em madeira de um banco de praça da cidade de Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul. Ambos abordam a apropriação da coluna do Alvorada por construções oficiais, ligadas a esfera municipal. Há na arquitetura do porto a menção ao patriotismo típico do período da Ditadura Militar, expresso na fachada onde se pode ler “Nós amamos o Brasil”. O pequeno banco posicionado no espaço em frente a pintura contempla a paisagem do porto. Nesta obra, Brasis muito distintos entre si, os interiores amazonense e sul-mato-gossense, conversam com bastante proximidade ao replicarem o mesmo ícone de modernidade. Por meio desta instalação, Talles Lopes pensa o espaço uno e diverso do Brasil, logo convoca simultaneamente as diferentes histórias de sua ocupação, de sua construção e de sua modernização.
Goiânia, outubro de 2021