Divino Sobral. 2024.
Paisagem aclimatada / Acclimatized Landscape
Paulo Tavares. 2024.
Forma Livre Fronteira / Form Free Border
Alice Heeren. 2023.
The Many Lives of Oscar Niemeyer’s Column.
Laura Vallés Vílchez. 2022.
Delfina Foundation.
Mateus Nunes. 2022.
Revista Celeste / Celeste Magazine.
Charlene Cabral. 2022.
Construção Brasileira / Brazil Builds.
Divino Sobral. 2021.
Excedente Monumental. Monumental Excess.
Dora Longo Bahia. 2020.
Prêmio EDP nas Artes / EDP Art Award.
Alysson Camargo. 2020.
As disputas de narrativas sobre a identidade brasileira.
The debate about the narratives on Brazilian identity.
Talles Lopes. 2024.
Engolindo o Velho Mundo / Swallowing the Old World.
Talles Lopes. 2024.
The other of the other - Archdaily.
Talles Lopes
Engolindo o Velho Mundo / Swallowing the Old World
Engolindo o Velho Mundo / Swallowing the Old World
Anthropophagy. 2023. Watercolor and ink on paper. 22 x 29,9 in.
Foto/Photo: Paulo Rezende.
Já faz alguns anos que tenho dedicado parte da minha prática artística a pensar a cartografia como linguagem, preocupado em como esse modo de representação não somente sintetiza, mas constrói visões de mundo. Foi durante um desses processos, buscando por cartografias do Brasil na plataforma David Rumsey Map Collection, que me deparei com o mapa das “Explorações Portuguesas do Continente Sul Americano no Século XV”, mapa que destaca a área do atual Brasil evidenciando a ocupação do território americano por Portugal. As Capitanias Hereditárias, áreas administrativas portuguesas, são destacadas no mapa em diferentes cores e matizes, colorindo desde o litoral atlântico até o limite do Tratado de Tordesilhas (1494), acordo concebido como divisão colonial do Novo Mundo entre os impérios hispânico e português.
O mapa é parte de um documento de nome gigantesco, o Atlas de Portugal Ultramarino e das Grandes Viagens Portuguesas de Descobrimento e Expansão (1948), produzido pelo Ministério das Colônias e pela JMGIC (Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais). Lendo Luís Miguel Moreira [1], soube logo que apesar da atenção dada ao tratado de 1494 e a uma ex-colônia portuguesa independente desde 1822, na realidade a publicação enfoca a propaganda colonial e exploração cartográfica de outros territórios que ainda no século XX permaneceram sob o domínio português.
O atlas apresenta territórios como Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e demais colônias através de dados geográficos, etnográficos, botânicos e outras informações distribuídas em 110 mapas coloridos. O conjunto impressiona pela qualidade gráfica dos desenhos, em que a precisão dos traços, cores, padrões e formas parece ultrapassar seu sentido técnico. Por vezes me parecendo que a violência existente na linguagem cartográfica supostamente universal e neutra se converte em um exercício estético de abstração formalista.
Atlas de Portugal Ultramarino. Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1948. Fonte: David Rumsey Map Collection
Atlas do Brasil. Brasília: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959.
Atlas do Brasil. Brasília: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959.
Há pouco tempo lia em Fernando Lara que "a abstração é a forma mais difundida de privilégio" [2], o que fez sentido nos mapas, na medida em que a capacidade cartográfica de projetar-se fora do mundo para vê-lo, estando dentro dele, é provavelmente a ação padrão que precede qualquer dominação efetiva desse mesmo mundo. Ao passo que enquanto quem projeta – o homem branco – está do lado de fora da representação, os demais tornam-se passíveis de serem reduzidos a objetos nas representações. De maneira que não impressiona que a violência colonialista secular tenha se reafirmado através de abstrações cartográficas que soam tão inofensivas. Nem impressiona o resgate temporalmente remoto do Tratado de Tordesilhas como afirmação das qualidades expansionistas portuguesas 454 anos mais tarde, ferramenta para legitimar o império colonial português diante da conjuntura mundial em meados do século XX.
Por outro lado, me impressiona como esse resgate colide com outra representação que me é bastante familiar, o mapa “Expansão Territorial do Brasil” (1958), publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que novamente resgata e destaca o Tratado de Tordesilhas mais de 400 anos depois no tempo. Chama minha atenção não tanto o simples destaque dado ao Tratado num período longínquo, o que é frequente em mapas escolares, mas precisamente o fato do mapa expansionista marcar a introdução de uma importante publicação estatal em pleno processo de modernização do país, o Atlas do Brasil (1959)[3], publicado durante a construção da capital Brasília no interior do país e sua jornada modernizadora de integração nacional no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961).
Como apresenta o Atlas do Brasil, enquanto os bandeirantes e as cidades coloniais surgidas da exploração do outro "simbolizam o devassamento e a posse teórica" dos territórios adjacentes ao Tratado de Tordesilhas, a construção de Brasília seria a "esplêndida realidade da ocupação efetiva". Os bandeirantes foram exploradores de São Paulo, geralmente de descendência portuguesa, responsáveis pela anexação das áreas hispânicas do Tratado de Tordesilhas, o que faziam através das bandeiras – incursões ao interior do continente em busca de ouro e da escravização de povos originários. Do mesmo modo, Paulo Tavares[4] faz ver que a celebrada pintura Primeira Missa no Brasil (1861), feita por Victor Meirelles (1832-1903) e inspirada na carta de Pêro Vaz de Caminha (sc. XV) sobre a chegada portuguesa no Brasil, foi a imagem conscientemente reencenada na missa da fundação de Brasília, assim a nova capital modernizante já apontava um futuro de volta ao passado colonial.
Se no atlas português o Tratado de Tordesilhas é resgatado como ato fundacional colonialista, no atlas brasileiro a menção à superação de seus limites pelas bandeiras paulistas é forjada como o primeiro ato colonialista essencialmente brasileiro. Foi indagando sobre esses paralelos que iniciei uma série de trabalhos onde contraponho representações do Brasil entre si e também com outros territórios, pensando que esse simples exercício de colidir imagens poderia desvelar a internalização de lógicas coloniais dentro de uma noção de "brasilidade". Como sugere a relação que pude construir entre a capa do livro brasileiro S. Paulo é Isto! (1932) [5] e o cartoon britânico The Rhodes Colossus (1892) [6] na aquarela "Pra inglês ver" (2023), enquanto a Europa operava o colonialismo em diferentes territórios ultramarinos, no Brasil nostalgicamente se fantasiava o bandeirante paulista como uma versão interna da "era dos descobrimentos".
Pra inglês ver. Talles Lopes. 2023. Watercolor and ink on paper. 22 x 29,9 in.
Foto/Photo: Paulo Rezende.
A violência do binômio metrópole e colônia aparece com frequência eufemizada no mito de uma unidade homogênea formada por explorador e explorado, como na capa da revista Paris-Match (n° 326, 1955) com um jovem negro supostamente saudando a bandeira francesa. Tal episódio foi apontado por Roland Barthes [7] como exemplo de um regime de exploração material e simbólica que é velado na ideia conciliatória de um grande império onde "todos os seus filhos, sem distinção de cor, a servem fielmente sob a sua bandeira". Na leitura de Barthes facilmente caberia também a capa da edição da revista brasileira Vida Doméstica (n° extraordinário, 1940), que promove a ideia de "guarda as terras do Brasil" como uma suposta colaboração entre o exército nacional e os povos originários do território dito brasileiro. Ao me apropriar de tal capa quando produzi a aquarela Antropofagia (2023), pude contrapor a peça gráfica com o cartaz do programa nacional de colonização chamado Marcha para o Oeste (1937-1945), cujo os vetores de colonização mais lembram o mapa de uma guerra interna, levantando questionamentos sobre o aparente concílio ilustrado em Vida Doméstica.
Anthropophagy. Talles Lopes. 2023. Watercolor and ink on paper. 22 x 29,9 in.
Foto/Photo: Paulo Rezende
Igualmente, o famoso cartaz "Portugal não é um país pequeno" (Exposição Colonial do Porto, 1934) trouxe a representação cartográfica das colônias portuguesas junto à metrópole como uma extensa unidade territorial, como se o colonialismo fosse não um exercício de poder, mas uma união fraternal entre esses diferentes territórios. A capa de S. Paulo é Isto! [8], citando o historiador português Joaquim Pedro de Oliveira Martins, "de S. Paulo poude sahir a raça que fez o Brasil”, soa como essa mesma ficcionalização absurda de unidade fraternal sob supremacia racial. As aquarelas que produzi na série Parte pelo todo (2023), testemunham que o cartaz português me recordava uma série de mapas do Brasil feita a partir do estado paulista ao longo do século XX, que informados pela nostalgia bandeirante, me faziam ver sem grandes esforços semiológicos algo delirante como a paródia "São Paulo não é um país pequeno", na relação gráfica entre São Paulo e Brasil, metrópole e colônia.
Part for the whole n.1. Talles Lopes. 2023. Watercolor and ink on paper. 22 x 29,9 in. Foto/Photo: Paulo Rezende.
Part for the whole n.2. Talles Lopes. 2023. Watercolor and ink on paper. 22 x 29,9 in. Foto/Photo: Paulo Rezende.
Universal language for local erases. Talles Lopes. 2023. Watercolor and ink on paper. 27,5 x 27,5 in
Nessa perspectiva, me parece que o Atlas sistematiza conscientemente uma confirmação técnico-científica do mito cuidadosamente construída na introdução da publicação com o mapa “Expansão Territorial do Brasil”, que a partir do Tratado de Tordesilhas mitifica um Brasil conquistador, o leste, e um Brasil conquistado, o oeste. Diferentemente da distinção entre América e América Lusófona presente no Atlas Português Ultramarino (1948), o mapa “Expansão Territorial do Brasil” traz um Brasil dividido em dois, fazendo lembrar que a ideia de expansão supõe um Brasil anterior ao Brasil, ou como sugerem os vetores de colonização de cartazes estatais reproduzidos em Subdesenvolvimento Linear (2016), um Brasil colonizado pelo próprio Brasil, um país com sua própria projeção interna de Velho Mundo e Novo Mundo.
Talles Lopes. Linear Underdevelopment. Talles Lopes. Watercolour and ink on paper. 61 x 61 cm. 2016 / Photo: Isabella Matheus.
Por fim, vale questionar mais uma vez a neutralidade da linguagem universal adotada pela cartografia, na medida em que os dados e gráficos, supostamente imparciais, transformam-se em uma versão cartesiana das figuras mitológicas ilustradas nos mapas das grandes navegações, que com frequência serviam à estigmatização e animalização dos povos não-brancos e seus territórios. Suspeitando que o mesmo ocorre quando os dados dos mapas do Atlas do Brasil de 1959 incorporam a dita codificação de mundo entre Europa e não-Europa anunciada por Aníbal Quijano [9], projetando no território brasileiro as categorias leste e oeste como equivalentes aos dualismos "primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno".
Vivendo em Goiás, no interior do Brasil central, espaço exaustivamente mapeado e mitificado como uma espécie de terra prometida ou El Dorado da América portuguesa desde as incursões bandeirantes, passando pelo processo de modernização com a construção de Brasília e alcançando a atualidade com a alta especulação do potencial agrícola da região, me pareceu relevante "fazer o caminho de volta" em torno desses mitos. Prática em parte testemunhada neste texto, tenho me proposto um exercício de coletar, organizar e me apropriar dos mapas responsáveis por reiterar tais mitos e violências coloniais, para assim quem sabe desestabilizar suas narrativas históricas e desnaturalizar seus apagamentos massivos, se é que isso é possível. Vivendo na barriga dessa criatura, que segue digerindo um Velho Mundo sem ânsia de regurgitar, parece-me que um caminho possível ao menos é tornar esse processo indigesto.
- Luís Miguel Moreira, “Forjar um Império”, Terra Brasilis [Online], 17, 2022. Disponível em <http://journals.openedition.org/terrabrasilis/11224>, acesso em 29 de dezembro de 2023.
- Fernando Luiz Lara, "Abstraction is a Privilege", PLATFORM – Provocative Timely Diverse. Disponível em <https://www.platformspace.net/home/abstraction-is-a-privilege>, acesso em 29 de dezembro de 2023.
- Divisão de Geografia do Conselho Nacional de Geografia (org.), Atlas do Brasil (geral e regional), Rio de Janeiro: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959.
- Paulo Tavares, “A Capital Colonial”, Revista ZUM, Rio de Janeiro: IMS, 2020. Disponível em <https://revistazum.com.br/ensaios/a-capital-colonial/>, acesso em 29 de dezembro de 2023.
- Antoine Renard. S. Paulo é Isto!, São Paulo: 1933.
- Revista Punch, or the London Chaviravi, Londres: 1892.
- Roland Barthes. Mitologias, 4a ed., Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.
- Antoine Renard, S. Paulo é Isto!, São Paulo: 1933.
- QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.